TRANSGÊNICOS: UMA PULADA DE CERCA NA ÉTICA
O senador Renan Calheiros não é o único a pular cercas em Brasília. Uma obscura comissão do governo federal também vai contornando a ética para tomar decisões de enormes impactos para o Brasil. Tudo sem a devida transparência, sem a atenção da imprensa nem o interesse dos congressistas – muitos deles enrolados em Operações Isso e CPIs Aquilo.
Trata-se da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), que tem a responsabilidade de analisar os pedidos de liberação de organismos geneticamente modificados (OGMs), os transgênicos. Até o final desta semana, a CTNBIO estuda dois pedidos de liberação comercial de milho transgênico – uma espécie que se mistura facilmente com outras, formando um terceiro ser artificial, cuja relação com o meio natural ninguém sabe no que vai dar.
A possibilidade de um OGM se misturar a outras espécies e variedades não é ficção científica. A contaminação transgênica já acontece agora mesmo no México, onde toda a produção nacional de milho está contaminada por uma variedade geneticamente modificada. O resultado é um impacto enorme na produção de tortillas, um alimento tão popular entre a população mexicana quanto o brasileiríssimo feijão com arroz .
Pois, a tendência na tal Comissão, aqui no Brasil, é liberar o milho frankstein, mesmo que os indícios (cada vez mais fortes) de irreversíveis impactos no meio ambiente e na saúde dos consumidores não tenham ficado suficientemente claros. Mas, nem essa situação de tamanha gravidade foi capaz de atrair a atenção de quem devia ter por função e praxe sempre jogar luzes sobre qualquer tipo de obscurantismo.
Afinal, a imprensa gasta todas as primeiras páginas para analisar a (bela) pulada de cerca de Calheiros, ao mesmo tempo em que minimiza a inexplicada relação do presidente do senado com a empreiteira Mendes Júnior. Enquanto isso, a CTNBIO faz de tudo para dar aparências de processo científico a uma sequência de decisões pré-concebidas e tomadas por pessoas que se recusam a assinar termos de conflito de interesses.
Em 16 de maio, a CTNBIO autorizou a comercialização de uma outra variedade de milho transgênico, esta pertencente à companhia Bayer. Para chegar a esta decisão, precisou alterar as regras do jogo. Antes, era necessário que 2/3 dos conselheiros aprovassem uma liberação. O quórum foi reduzido à maioria simples, porque mesmo entre as fileiras dos técnicos pró-transgenia comercial havia dúvidas. Até hoje o Ministério Público Federal avalia a possibilidade de requerer à Justiça a anulação daquela decisão da CTNBIO.
Mas, a toque de caixa, e a despeito da lisura ética da decisão, a Comissão incluiu na sua pauta desta semana a avaliação de duas novas liberações – uma delas pertencentes à megamultinacional Monsanto.
A aprovação atabalhoada do milho transgênico da Bayer no mês passado deixou marcas profundas na CTNBIO e na própria idéia do “rigor científico” como valor máximo para a tomada de decisão – tudo com escassos registros na imprensa pátria, mais interessada na vida das celebridades e nas imagens espetaculares de operações da Política Federal.
Logo no dia seguinte à aprovação, em 17 de maio, a doutora Lia Giraldo da Silva Augusto, então membro titular da CTNBIO, detalhou os motivos da sua renúncia ao cargo. Arrumou-os em uma carta e a enviou ao presidente da Comissão e aos Ministros do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia. A carta de Lia Giraldo transformou-se em um retrato dos interesses nem sempre republicanos que se juntam nessa CTNBIO e mostra que cientistas, assim como presidentes do Senado, também desrespeitam as cercas da ética.
“A CTNBIO está constituída por pessoas com título de doutorado, a maioria especialistas em biotecnologia e interessados diretamente [grifo meu] no seu desenvolvimento. Há poucos especialistas em biossegurança [exatamente a razão de ser da Comissão, idem ] capazes de avaliar riscos para a saúde e para o meio ambiente”, ataca a também doutora Lia, que há 10 anos é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo cruz, o maior centro de pesquisas em saúde da América Latina.
Lia continua: “Os membros da CTNBIO têm mandato temporário e não são vinculados diretamente ao poder público com função específica, não podendo responder a longo prazo por problemas decorrentes da aprovação ou do indeferimento do processo”.
Mais: “O comportamento da maioria de seus membros [da CTNBIO] é de crença em uma ciência da monocausalidade. Entretanto, estamos tratando de questões complexas, com muitas incertezas e sobre as quais não temos controle, especialmente quando se trata de OGMs [organismos geneticamente modificados] no ambiente”. Por fim, a doutora Lia afirma o que a imprensa e o poder público não notaram até agora: os interesses comerciais se sobrepõem “aos interesses da biossegurança com o beneplácito da CTNBIO”.
Existem ainda expedientes escabrosos na condução da CTNBIO, incluindo reuniões fechadas, pautas não divulgadas e outros artifícios. Tudo aceito como normal, no país em que o presidente do Senado tem suas contas pagas por conhecido lobista de Brasília.
Aliás, em se falando de transgênicos, a história talvez relate, algum dia, o monumental esquema de lobby que funciona desde pelo menos 1997 para se introduzir as commodities agrícolas geneticamente modificadas na matriz alimentar do Brasil, o controle da produção e da distribuição de sementes no país e os oligopólios internacionais que intermediam 100% da exportação de alimentos produzidos por aqui.
Também publicado em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_Post=62465&a=112 .
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