sábado, julho 14, 2007

MUITO ALÉM DO MADEIRA

Com a emissão pelo Ibama da Licença Prévia para as hidrelétricas no rio Madeira (RO) o governo envia dois recados. Primeiro recado: esse passo inicial da construção das usinas Jirau e Santo Antônio pavimenta o caminho de outros megaprojetos previstos no PAC. Segundo recado: na visão dos planejadores federais, a Amazônia é uma grande provedora, para o País e para o mundo, de fonte barata de energia (hidroeletricidade, gás natural e petróleo) e de minérios, além da água e dos nutrientes do solo que são exportados sob a forma de soja, da cana de açúcar e do eucalipto que se espalham pela região.

Para os que estão preocupados com o tipo de desenvolvimento que pode ser induzido pela eletricidade das hidrelétricas no Madeira, é bom avisar que isso é só o começo. Da boca do forno do PAC em breve sairá outra batelada de polêmicas. A primeira deve ser usina Belo Monte, projetada pela Eletrobrás e Eletronorte para o rio Xingu (PA).

Há 20 anos Belo Monte se chamava Kararaô, mas, aí, entrou em cena Tuíra. Em audiência pública para debater o projeto, a indígena ameaçou matar o presidente da Eletronorte, caso a usina fosse construída e a inundação provocada pela obra prejudicasse sua aldeia. A imagem de Tuíra brandindo seu facão correu o mundo e ajudou a mandar Kararaô para o purgatório. Mas, há uns oito anos, a usina fez uma plástica no seu projeto-base e começou a voltar à agenda pública, aí já rebatizada marqueteiramente Belo Monte.

Aliás, a usina de polêmicas do governo federal está a todo vapor. Em entrevista a Renan Albuquerque, do jornal Amazonas Em Tempo, Antonio Manzi, diretor-executivo do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), adiantou que o governo planeja construir 75 novas hidrelétricas na Amazônia até 2050! O anúncio foi feito durante a 59ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que se realiza em Belém (PA).

Ou seja, governo após governo Brasília, confirma aquela visão de escritório que tem sobre a Amazônia. Planeja obras tais e quais e desconsidera que ali vivem quase 20 milhões de brasileiros que raramente são consultados sobre as decisões oficiais. Brasília continua enxergando a Amazônia como fonte inesgotável de produtos exportáveis, de baixo valor agregado, que poderá ajudar o País inteiro a se enquadrar de forma rebaixada nos fluxos econômicos internacionais e, assim, garantir o troco da globalização.

Há os que descordam dessa opção. Como o físico Ennio Candotti, presidente da SBPC. A Daniela Chiaretti, do jornal Valor Econômico, Candotti alertou que “infelizmente, ao se analisarem os documentos da SBPC de 1983 [na primeira vez que a Sociedade realizou na capital paraense o seu congresso], percebe-se que as piores projeções para a região se confirmaram. Os desastres ecológicos causados pelas hidrelétricas e pela ocupação desordenada; o avanço da faixa de desmatamento e as dificuldades de integração social com as comunidades da região”.“A lógica asfáltica não cabe ali", disse Candotti ao Valor, defendendo, ainda, que “a integração da América Latina comece por lá, unindo ciência e educação. "É preciso pensar em 'cérebrodutos' e não só em gasodutos'".

O físico também chamou a atenção para a necessidade de pensar a Amazônia reforçando sua dimensão nacional. “Não é possível imaginar o Brasil sem Amazônia, mas a unidade nacional está ameaçada pela falta de políticas públicas para a região“.

Há, embutida nessa constatação, um alerta para as os constrangimentos potenciais da conjuntura internacional. Em outras palavras, há perigos colocados pela expansão permanente do império estadunidense que vai até à guerra, por petróleo, seja no Afeganistão, no Iraque ou no Irã. A Amazônia da abundância atrai, sim, a atenção do império, que já fincou bases militares em sete dos nove países da Bacia Amazônica – os dois países isentos da presença militar estadunidense são Brasil e Venezuela.

O império não pensará duas vezes se precisar garantir os recursos necessários à manutenção dos seus padrões de consumo e de produção. Água, energia, diversidade biológica, minério, alimentos e outros bens da natureza – todos estocados em grande escala na Amazônia - necessariamente passam a entrar nas considerações dos países, e dos EUA, em especial, que concentram enorme poder militar, científico, econômico e diplomático.

Projetos nababescos como Santo Antônio, Jirau ou Belo Monte e seus orçamentos bilionários cumprem dois objetivos nesse cenário.

Para dentro do Brasil, reforçam a tese de que o Estado nacional é apenas um instrumento para legitimar interesses de grupos poderosos, que desconsideram as reais necessidades da população dos locais em que os projetos são instalados. Sempre pairará sobre esses projetos a desconfiança de são um fim em si mesmo e de que não passam de retribuição, com dinheiro público, de favores pouco republicanos.

Nesse sentido se pronunciou o procurador da República no Pará, Felício Pontes Júnior, em entrevista ao jornal O Liberal, de Belém, a respeito de Belo Monte: “ Os estudos realizados por pesquisadores do setor elétrico apontam que a hidrelétrica não deverá gerar os anunciados 11 mil megawatts (Mw) previstos e sim apenas 1,3 mil Mw”.

“O rio Xingu, para onde está projetada a usina, apresenta um ciclo de cheia de seis meses. No período de seca há uma baixa muito acentuada do nível do rio. Durante três a cinco meses, Belo Monte não gerará nenhuma energia, pelo menos da forma como está concebido o projeto', explica Pontes Júnior, acrescentado que esses estudos existem há pelo menos dois anos e, apesar da insistência do procurador, nunca foram contestados pela Eletronorte ou pelo Ministério das Minas e Energia”.

Pontes Júnior ainda chamou atenção para outros problemas: “Em primeiro lugar, a responsabilidade pelo projeto saiu da Eletronorte e foi para a Eletrobrás, que convocou três grandes empreiteiras, coincidentemente no grupo dos maiores doadores da campanha presidencial de Lula, para refazer os estudos', diz o procurador.

Para fora do Brasil, esses projetos à moda Brasil Grande cumprem outra função. Eles reforçam a idéia – enganosa – de que os recursos naturais são inesgotáveis e de que a única estratégia de desenvolvimento possível para o Brasil, e sua consequente posição no cenário internacional, é o de exportador desses recursos, quase in natura, para beneficiamento e agregação de valor econômico e tecnológico no além mar.

De uma forma ou de outra, o debate sobre as hidrelétricas coloca a seguinte questão para o Brasil: quando iremos, enfim, jogar fora a idéia de que a metade superior do mapa nacional é uma espécie de país exótico e passaremos a tratar da Amazônia, efetivamente, como parte importante do País? (Também publicado em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=65650)