"LULA É AMBÍGUO. ALCKMIN, NEFASTO"
20/10/2006 | Copyleft
ENTREVISTA - EDGARDO LANDER
Lula é ambíguo; Alckmin, nefasto, diz sociólogo venezuelano
Um dos mais conceituados analistas latino-americanos avalia que a política de Lula para a América do Sul não rompeu com a ortodoxia, mas que ambigüidade ideológica possibilitou a participação do Brasil num projeto de autonomia regional frente ao poderio dos EUA. Para ele, vitória de Alckmin seria nefasta para a região
Verena Glass - Carta Maior
SÃO PAULO - No início desta semana, circulou pela internet um apelo, intitulado “Para os movimentos populares da América Latina é decisiva a derrota de Alckmin” e subscrito por mais de 80 intelectuais e lideranças sociais da região e da Europa, para que o eleitorado brasileiro não vote no candidato tucano.
O manifesto, direcionado principalmente aos eleitores de Heloisa Helena e Cristovam Buarque, não é realmente uma declaração de apoio a Lula – diz inclusive que alguns signatários têm “sérios desacordos com aspectos centrais das políticas do governo” -, mas, reforçando que isso não significa, de modo algum, que seja irrelevante quem ganhe as eleições no segundo turno, afirma que uma vitória da direita poria em risco tanto as lutas sociais quanto os projetos políticos à esquerda de parte dos governos do continente sul-americano.
A preferência de lideranças políticas da região por Lula, indicada, em maior ou menor grau de clareza, pelos presidentes Nestor Kirchner, da Argentina, Hugo Chávez, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia, tem como pano de fundo o esforço de dar continuidade ao processo de distanciamento da influencia dos EUA sobre a América do Sul. E, como explica o embaixador boliviano para temas de integração e comércio, Pablo Solon, “o Brasil tem um papel fundamental no processo de autonomia da região em relação aos interesses de outros centros de poder”.
Ao menos no discurso, o Brasil também tem sido fundamental para consolidar uma visão de integração regional que tem diminuído o peso do exclusivismo da pauta econômica, para incluir no debate o conceito de “melhoria de qualidade de vida da população”, acrescenta Solon. “Se o país perder esta perspectiva, esta visão de integração para o povo, e voltar a adotar a formula tradicional de se relacionar com a região, o processo que foi iniciado pode ser abalado”, avalia o embaixador.
Idealizador do manifesto contra Alckmin, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, que atuou como negociador da ALCA pelo governo de Hugo Chávez, faz uma avaliação mais cética da política externa de Lula. Em conversa com a Carta Maior, Lander considera, no entanto, que, apesar da ortodoxia do governo, sua ambigüidade ideológica ainda permite a disputa de rumos. Já o projeto tucano, diz o sociólogo, traria um enorme retrocesso para a América do Sul. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Carta Maior – Neste segundo turno, tanto Lula quanto Alckmin têm buscado reforçar as diferenças entre os projetos políticos que têm para o país. Na sua avaliação, estas distinções têm ficado claras, principalmente no âmbito das relações internacionais?
Edgardo Lander - Poderíamos começar a falar das coisas comuns. No debate político destas eleições, não estavam postas alternativas diferentes para o país. Por parte de Lula, não foi colocada uma ruptura com a ordem neoliberal, uma nova redistribuição da terra, ou uma transformação profunda do sistema político brasileiro. De todas maneiras, temos um presidente ambíguo, que mantém a confiança do mercado, as altas taxas de juros, que se comporta como um dirigente “responsável”. Mesmo assim, é evidente que o PT tem uma história, uma trajetória, uma sensibilidade e uma intelectualidade que, em certa medida, aspira à outra coisa.
CM – Mas no documento que convoca o eleitorado brasileiro a repudiar o candidato Alckmin, se fala em uma diferença fundamental. Onde está a distinção entre as duas propostas?
EL - Há uma coisa que não é o socialismo nem a transformação da sociedade, que é o espaço democrático. Acredito que no governo Lula há mais perspectiva de preservação do espaço democrático, de possibilidades de resistência, de luta e mobilização, sem os custos de sangue que teria um governo de direita. Mas há elementos comuns entre os dois projetos. As razões pelas quais se trancou as negociações da ALCA não foram razões de princípio, de integração latino-americana, de rechaço ao mercado ou ao neoliberalismo, mas sim um rechaço ao fato de que os EUA não são conseqüentes com sua política neoliberal, e que a agroindústria brasileira não conseguiu ampliar seu acesso ao mercado norte-americano. No governo, muitas coisas que aparecem na retórica como muito avançadas, progressistas e críticas, na realidade são defesa de interesses que pouco tem a ver com os setores populares.
CM – O senhor parece considerar a indefinição ideológica do governo Lula neste aspecto ao mesmo tempo criticável e positiva...
EL - Tomemos como exemplo a nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos. Através da cobertura da grande imprensa, como a Folha [de São Paulo], que reproduz a visão da direita, pudemos ver como o governo brasileiro, fortemente criticado, não foi diretamente solidário com a nacionalização, mas se comportou com suficiente ambigüidade para não colocar em perigo a estabilidade do governo boliviano. Se fosse um governo de direita, com certeza as conseqüências para o governo da Bolívia teriam sido muito mais sérias. Isso não é pouca coisa.
CM – Nos últimos anos, os governos da América do Sul têm iniciado um debate tanto conceitual quanto político sobre integração regional. Como o Brasil se encaixaria neste debate?
EL - Creio que temos de falar novamente de ambigüidades e intenções, mais do que da possibilidade de que um segundo mandato de Lula redirecione a política brasileira a outro modelo de integração. A experiência do neoliberalismo na América Latina reconformou as relações de classe de tal maneira que os setores financeiros e produtivos mais importantes se beneficiaram com uma reconcentração produtiva e do poder. Temos na América Latina severos obstáculos para uma integração diferente porque os agentes produtivos na realidade não estão interessados nisso, mas no mercado internacional. Ir contra isso significa uma ação política e de mobilização popular, e obviamente Lula não vai estar disposto a isso. Portanto, com certeza continuará ambíguo em seus discursos.
CM - Qual a sua avaliação, então, sobre a imagem da América do Sul como um bloco de governos progressistas e aliados num novo projeto de autonomia política? Na sua avaliação essa harmonia política entre os chefes de Estado da região existe? Incluindo o Brasil?
EL - O fato de que há uma vontade política de integração e relação geopolítica, e que, apesar de tudo, Lula de alguma forma reconheceu o direito do governo e do povo boliviano de nacionalizar seus recursos, não é pouca coisa. Pode ser a diferença entre a sobrevivência ou não do processo boliviano. Quando houve o paro petroleiro na Venezuela e o governo do Brasil, como forma de apoio, enviou à Venezuela um carregamento de combustivel, foi um statment político de primeira ordem. Do ponto de vista político foi importantíssimo. O fato de que, na reunião da OEA na Flórida, os EUA tentaram redefinir a carta democrática para condenar a Venezuela como país não democrático, e que houve a resistência que houve da maior parte dos países da América Latina, isso forma parte de uma nova conjuntura na região. Há dez anos, imaginar que a Alca pudesse ser derrotada era uma fantasia. E no entanto a Alca está praticamente morta. Isso é produto de um processo de resistência e denuncia dos movimentos sociais, mas também da atuação de governos.
CM – E se Alckmin fosse eleito no Brasil, qual seriam as conseqüências?
EL - O que vivemos nos últimos anos na América Latina é muito importante. Há uma dimensão política e subjetiva muito importante. Esta idéia de que há governos de esquerda, de que os presidentes têm relações fraternas, que há um apoio político em determinados momentos, isso não é pouca coisa, tem conseqüências e impactos muito fortes. Se Alckmin chega à presidência, o projeto da direita brasileira retormará o aprofundamento do neoliberalismo, da ALCA, das relações com os EUA, e isso teria conseqüências muito negativas para a América Latina. Se o Brasil opta politicamente por dar as costas à América Latina e prioriza a relação com os EUA, aí morre o projeto de integração da América Latina. Uma América Latina sem o Brasil é uma radical impossibilidade.
CM - Por isso a opção por Lula...
EL - Repito, existe ainda muito ambigüidade, estamos ainda muito insatisfeitos com as ações de vários governos, mas nos damos conta que, de toda maneira, a alternativa [a Lula] seria muito, muito pior. Os temas de integração da América Latina com Lula estão pelo menos colocados como possibilidade. Com um governo da direita, estão negados. Mesmo não apostando que Lula vai mudar num segundo mandato, podemos dizer que no governo Lula pelo menos há espaços de debate, de confrontação, um espaço de uma força que siga sendo de esquerda no PT, uma organização com capacidade de mobilização e pressão sobre o PT, o que não haveria num governo de direita. No governo Lula está aberta esta possibilidade, no governo Alckmin esta porta está fechada.
CM – Quais as possibilidade reais, na sua opinião, de uma reversão dos rumos de um segundo mandato de Lula na direção das demandas dos setores de esquerda do país e da América do Sul? Quais seriam as ferramentas para isso?
EL - O problema é que Lula chegou ao governo num momento em que a sociedade brasileira estava muito desmobilizada, se compararmos com o que eram as décadas anteriores. O governo Lula chega em condições nas quais não tem maioria no Congresso, onde os setores que ganharam com o neoliberalismo estão muito fortalecidos e numa situação de relativa desmobilização popular. O que pode acontecer num segundo governo não vai depender apenas da política de Lula, mas também se há força e capacidade de recuperar a capacidade de mobilização dos setores populares.
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