quinta-feira, agosto 31, 2006

NEI LOPES CONTRA O HIP HOP

Não é a primeira vez que mestre Nei Lopes, um dos maiores pesquisadores da brasilidade, investe sua verve de poeta e militante do samba bom verdade contra a moda do hip hop. No texto abaixo, publicado originariamente no Meu Lote, blog oficialíssimo do mestre (http:neilopes.blogger.com.br), o autor de Senhora Liberdade (com Wilson Moreira) tasca: “o protesto negro na música sempre foi um apanágio da canção brasileira mais legítima, desde Lata d'água na Cabeça, Pedreiro Valdemar, João do Vale, Gordurinha, Aluísio Machado - sambista só conhecido pelos seus sambas-enredo mas que entretanto foi um dos "malditos" da ditadura de 64 - até o atualíssimo Trio Calafrio, para só citar alguns exemplos. Mas esse protesto, hoje, só é aceito como tal, e não como galhofa, quando tem a forma do protesto made in Bronx, Harlem etc. Aí, é moderno, é "tendência".

O PROTESTO NEGRO E A INDÚSTRIA DO ENTRENIMENTO

Por Nei Lopes

A revista Cult, publicação de "alta Cultura" editada há nove anos na capital de São Paulo, publica em sua edição de agosto, nº 105, uma longa entrevista com o grande compositor e cantor Caetano Veloso.

A certa altura da conversa, o admirável artista aborda a momentosa questão afro-brasileira, relatando uma discussão que tivera, a respeito, com o rapper MV Bill, nestes termos: "...eu queria fazê-lo ver que ele precisava levar em conta que grande parte do que é, não só movimento de consciência da questão racial, como o movimento específico do hip hop, ao qual ele se filiou, tem muito do desejo brasileiro, exposto em várias áreas, de ansiosamente imitar os americanos. E, de certa forma, com isso, se reafirmava uma humilhação dos brasileiros perante os americanos, o que não difere da humilhação dos negros perante os brancos".

Pelo que entendemos, o grande Caetano Veloso, que se manifestou recentemente contra a chamada "política de cotas", também acha que a pauta de reivindicações dos negros brasileiros obedece a um modismo africano-americano.

Mas ele, que é também uma espécie de "padrinho" de algumas instituições que praticam o que chamamos de "cidadania hip hop", e que conhece muito mais do que nós os meandros da indústria fonográfica transnacional, por onde transitam com desenvoltura importantes personagens como Nelson Motta e André Midani, é claro que não desconhece uma outra verdade cristalina.

Essa verdade é que o protesto negro na música sempre foi um apanágio da canção brasileira mais legítima, desde Lata d'água na Cabeça, Pedreiro Valdemar, João do Vale, Gordurinha, Aluísio Machado - sambista só conhecido pelos seus sambas-enredo mas que entretanto foi um dos "malditos" da ditadura de 64 - até o atualíssimo Trio Calafrio, para só citar alguns exemplos. Mas esse protesto, hoje, só é aceito como tal, e não como galhofa, quando tem a forma do protesto made in Bronx, Harlem etc. Aí, é moderno, é "tendência". Fora disso, porque, inteligentemente, usa o riso para fustigar os costumes, é apenas graça.

E falamos de cadeira, desde os nossos sambas, com Wilson Moreira, Senhora Liberdade e Coisa da Antiga, que já no final da década de 70, tiveram letras forçosamente modificadas; do partido-alto Pega no Pilão, no festival da Globo de 1980; dos nossos LPs, agora CDs, Negro Mesmo e Canto Banto, respectivamente de 1983 e 1985. O conteúdo de todo esse conjunto de obra expressa nossa posição diante da questão negra. Mas a forma que preferimos é a do samba. Então, as majors sempre descartaram esse nosso lado, preferindo, na hora de escolher os frutos no nosso tabuleiro, aqueles da "galhofa" ou do lirismo individualista, tipo "este amor me envenena".

Daí, então, a conclusão que tiramos da afirmação de Caetano Veloso: Enquanto o protesto negro, mesmo de dread-locks, tênis Nike e uniforme de beisebol, se restringiu à música, ele foi bem vindo e bem aceito, porque era pop. Mas quando ele transcendeu o entretenimento e passou à esfera legislativa, reivindicando inclusive, de terno e gravata, um Estatuto de Igualdade Racial, aí ele passou a ser "imitação de negro americano" e ameaça à "cordialidade que sempre reinou, entre brancos e negros, neste país sem racismo".

Ora, ora... a "cordialidade" já desceu o morro está na rua, brothers! E exatamente pra buscar aquele Nike, aquelas roupas de marca, aquele carrão, que a música da esfera pop prometeu. E usando aquelas técnicas e instrumentos que os filmes de tela-quente e temperatura máxima, coadjuvados pelos games de mortal combate, ensinaram a usar.

Isso, sim, é que é imitar americano!"