quarta-feira, agosto 02, 2006

A VERDADE SOBRE BELO MONTE

Lúcio Flávio Pinto, jornalista, em em 28/05/2002

Belém - Quando começou a ser construída, em 1975, a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, a segunda maior do país, abaixo apenas de Itaipu, deveria custar 2,1 bilhões de dólares. Ao ser inaugurada, em 1984, seu orçamento já havia alcançado US$ 5,4 bilhões. A Comissão Mundial de Barragens calcula que seu preço atualizado, até 2000, bateu em US$ 7,5 bilhões.

Considerando a linha de transmissão de energia associada à usina, o valor sobe para US$ 8,77 bilhões. Há quem estime esse custo em algo acima de US$ 10 bilhões. Para a Eletronorte, porém, o número oficial é de US$ 4,7 bilhões. Ou seja: menos do que o valor que já estava apropriado em 1984, incluindo juros durante a construção. Provavelmente essa conta de juros junto aos agentes financeiros europeus, transferida para a responsabilidade da Eletrobrás, ainda esteja em aberto. Quando apresentou, no ano passado, o projeto consolidado para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que deverá deslocar Tucuruí do segundo lugar e se tornar, ao final, a quarta maior usina de energia de fonte hídrica do mundo, a Eletronorte disse que a obra sairia por US$ 6,5 bilhões. Seriam US$ 3,7 bilhões na hidrelétrica propriamente dita e US$ 2,8 bilhões na linha de transmissão, uma das maiores do mundo, com 3.300 quilômetros de extensão, até os grandes centros consumidores, no sul do país.

Na semana passada, o presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, anunciou um novo valor: agora Belo Monte está orçada em US$ 5,7 bilhões, 800 milhões de dólares a menos do que no ano passado, uma boa economia de 12%. Mas a conta pode se tornar um bilhão de dólares mais leve, prometeu Muniz Lopes, acenando com a redução do "linhão" para US$ 1,7 bilhão. Assim, em questão de meses o custo de Belo Monte baixou de US$ 6,5 bilhões para US$ 4,7 bilhões, dos quais US$ 3 bilhões na usina e US$ 1,7 bilhão na linha de transmissão. Corte de 30%. Impressionante. Como o Brasil precisa acrescentar 4 mil megawatts a cada ano à capacidade instalada de geração para atender ao crescimento do consumo nacional de energia, não haverá quem se negue a apoiar o empreendimento proposto pela Eletronorte. Desde, naturalmente, que a empresa apresente suas planilhas de cálculo e se submeta a uma auditagem das suas contas, que nem sempre podem ser devidamente apuradas, conferidas e aprovadas.

Precisará demonstrar que, não sendo sua conta apenas um efeito da variação do câmbio, a quanto monta cada um dos itens de redução - redução ainda mais notável porque obtida na fase de planejamento da obra - da UHE Belo Monte.

Mas não só em relação às contas específicas da usina. É necessário fazer uma checagem mais ampla do projeto. Quando exibiu ao público o orçamento inicial, de US$ 6,5 bilhões (que já seria um belo número, se essa pudesse ser mesmo uma conta de chegada e não apenas uma conta de partida da obra, com final imprevisível, como acabou sendo Tucuruí), a Eletronorte não previa um acréscimo, que agora é feito: a construção de uma usina térmica em Belém, a capital do Pará, o Estado no qual a usina será construída. Essa termelétrica irá gerar 1,5 mil MW (pouco menos de 15% da potência nominal da hidrelétrica), com investimento de US$ 750 milhões.

Se essa termelétrica é obra complementar da hidrelétrica, o orçamento geral deixa de ser de US$ 4,7 bilhões. Sobe para US$ 5,45 bilhões. Esse "detalhe", que representa um razoável encarecimento do projeto, não foi destacado. Mas outros "pormenores" também permanecem pendentes de esclarecimento. Por que instalar a usina térmica em Belém, que fica mais de 700 quilômetros a leste da futura barragem? Seria para abastecer os consumidores próximos, dos quais os principais seriam a população da capital paraense e a fábrica de alumínio da Albrás, a maior do continente? Ou seria para assegurar a energização da linha durante quase metade do ano, quando nenhum megawatt estará saindo de Belo Monte por falta de água suficiente no Xingu para permitir à usina produzir energia?

Além dessas dúvidas, há uma outra questão: quem construir Belo Monte terá que assumir a responsabilidade pela térmica de Belém? O financiamento para essa obra será negociado como um pacote fechado, nas mesmas condições? Será seguido o esquema previsto pela Eletronorte, de privatização da obra, mas com financiamento oficial e com participação da Eletrobrás em até um terço do capital da empresa particular que vencer a licitação, passando ao mercado essas ações quando chegar a fase operacional?

O perfil de Belo Monte só poderá ser traçado com nitidez após a elucidação desses pontos. Mas ainda há outros. A Eletronorte já admite que a potência firme da usina será inferior ao patamar internacional de viabilização da construção de hidrelétricas, que é de 50% da capacidade nominal de geração. A potência teórica de Belo Monte, com suas 20 máquinas, é de 11 mil MW, mas a energia firme será de apenas 4,7 mil MW, ou 40% do máximo que ela será capaz de gerar no pique de verão. Em quatro meses do "inverno" amazônico, o Xingu não terá água suficiente para movimentar as gigantescas engrenagens das turbinas, que precisam de 700 mil litros de água por segundo (a demanda das 20 máquinas é de 14 milhões de litros de água a cada segundo). Em outros dois meses a produção de energia será mínima. Essa depleção, portanto, afeta profundamente a média. Complexo hidrelétrico

Belo Monte é realmente viável sozinha ou necessita de outros barramentos a montante do Xingu? De início, para vencer traumas e resistências do passado, a Eletronorte declarou que Belo Monte seria a única hidrelétrica na região. Recentemente, rebatizou seu projeto para "complexo hidrelétrico". Mas sugeriu que a adoção desse coletivo se devia a uma modificação na engenharia do empreendimento: haverá motorização também no vertedouro, a barragem secundária a ser construída no início da curva fechada (ou Grande Volta) que o Xingu dá, a 50 quilômetros do local onde surgirá a barragem principal, assegurando dessa maneira o fluxo normal de águas enquanto se constrói, a seco, a casa de máquinas, rio abaixo. Por que motorizar essa barragem menor se ela vai acrescentar apenas 100 MW ao complexo (ou 1% de sua capacidade nominal)?

Não será esse um claro indicador de que Belo Monte seguirá o mesmo rumo de Tucuruí também neste aspecto? A Eletronorte está neste momento elevando a cota operacional da barragem do nível de 72 metros, que era o normal, para o nível (maximo maximorum) de 74 metros. Esse aumento de dois metros na área do lago (que já ocupa 2.875 km2) representará menos de 3% de adição à potência nominal da usina do Tocantins, ao custo de 30 milhões de reais só para o pagamento da indenização das benfeitorias dos lavradores que novamente precisarão ser remanejados da beira do lago.

O dado maior, porém, não é esse: é ver passar pelo vertedouro da barragem tanta água não turbinada no inverno (a vazão do rio podendo chegar até a 60 milhões de litros de água por segundo, enquanto as necessidades da usina - e assim mesmo apenas no momento em que estiver completamente duplicada, dentro de três anos - serão de pouco mais de 11 milhões de litros por segundo) e no verão a escassez de água deixar a maioria das máquinas paradas. Dos 8,4 mil MW máximos, Tucuruí ficará com 3,3 MW médios ao final da duplicação em curso.

Assim, outras barragens terão que ser construídas Xingu acima para elevar a potência firme de Belo Monte, como certamente acontecerá em relação a Tucuruí. No Tocantins, a barragem que já está engatilhada para cumprir essa função, de suplementar o reservatório de Tucuruí, impossibilitado definitivamente de crescer, será a de Marabá. No Xingu, será a barragem de Babaquara. A área de inundação sai do âmbito dos singelos 400 quilômetros quadrados de Belo Monte e vai para seis mil quilômetros quadrados de Babaquara, mais do dobro do lago de Tucuruí. E se na esteira de Babaquara vierem os outros aproveitamentos inventariados pela Eletronorte no Xingu, o número vai parar em 14 mil km2 (para uma expectativa de produção de energia de 16 mil MW, mais do que Itaipu). A questão ecológica e os impactos humanos dos represamentos deixam de ser questões acessórias para serem itens essenciais na agenda de discussões sobre o que pretende a Eletronorte fazer no Xingu. Nestes parâmetros, o debate sobre a expansão da frente energética na bacia amazônica está apenas começando. Se a Eletronorte pretende mesmo lançar a licitação de Belo Monte em agosto, como anunciou, pode estar lançando-a sobre terreno inconsolidado. Qualquer barragista sabe muito bem o que isso significa. Não poderá alegar desconhecimento no futuro. (O Estado de S.Paulo )