terça-feira, novembro 07, 2006

A JANELA HISTÓRICA DA AMÉRICA LATINA

Enquanto Lula descansava durante o final de semana na Bahia, ocorreu em Montevidéo, no Uruguai, uma reunião de mandatários ibero-americanos que terminou marcada por três dúvidas:

1. a construção de polêmicas fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, na fronteira com a Argentina, deteriorará a relação entre Montevidéo e Buenos Aires a ponto de contaminar o Mercosul?;

2. a ausência de Lula já reflete uma decisão de o Brasil passar a priorizar suas relações com EUA e a União Européia, dando menos atenção aos vizinhos sulamericanos e abrindo espaço para Washington influir ainda mais na América Latina?; e

3. se esta nova orientação estratégica se confirmar, para que lado penderá o governo brasileiro em caso de a região e os EUA trem interesses antagônicos?

Um dia após ser reeleito em 29 de outubro, Lula afirmou à imprensa brasileira que o Mercosul, do qual é presidente pró-tempore, continua sendo, para ele, uma paixão especial. Seu Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorin, também ratificou que sua pasta continuará a olhar com mais carinho a América do Sul, onde empresas brasileiras têm uma enorme variedade de interesses.

Mas, já em 2 de novembro, o presidente voltou a exercitar a ambigüidade que marcou seu primeiro mandato e admitiu a três importantes jornais europeus - El País (Espanha), La República (Itália) e Le Figaro (França) - que de agora em diante pretende ter “relações privilegiadas” com a Europa e os EUA.

A eventual mudança de estratégia no front externo do Brasil – que sozinho representa metade do território, da população e do PIB da América Latina - poderá alterar o ponto de equilíbrio que tem assegurado que a “onda vermelha” se espalhe por toda região. Também atrapalhará a integração regional, visivelmente apoiada no primeiro mandato, e vai criar problemas graves para qualquer país que pense em resguardar seus recursos naturais – especialmente aqueles vinculados à energia –, como Bolívia e Venezuela.

Iniciada em 1998 com a eleição de Chávez na Venezuela, a onda de mandatários esquerdistas se confirmou no Brasil, na Argentina, Uruguai e Bolívia. Levou Ollanta Humala ao segundo turno no Peru e ajudou Lopes Obrador a criar uma situação de poder dual no México, mas ainda não chegou a definir a situação no Equador e Nicarágua, que terão o segundo turno das eleições presidenciais.

Com a “onda” ressurgiu também o sonho de Bolívar e Martí: a integração regional para estimular o desenvolvimento econômico e criar as condições mínimas para enfrentar o imperialismo dos EUA, que desde o século 18 enxerga a região como seu quintal.

Em defesa de Lula pode-se argumentar que, nestes tempos de formação de um novo governo, alteração de rumo tão grave na política externa brasileira é mera especulação daqueles que preferem Nova Iorque e Paris a La Paz e Caracas.
Mas, a pulga insiste em continuar atrás da orelha. Primeiro, porque o governo lulista tem sido marcado por contradições como essas que ele expressou já em seus primeiros dias de mandato. E, em segundo lugar, porque há meses circula em Brasília que Lula estaria disposto até a enviar para um conveniente exílio dois auxiliares próximos, que são os formuladores, fiadores e operadores da prioridade à América do Sul. E, acusados pelos pró-americanistas de anti-americanistas.

Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula, presidente nacional do PT e coordenador da campanha de reeleição do presidente, iria para uma bem remunerada representação do Brasil no Banco Mundial, em Washington. Samuel Pinheiro-Guimarães, secretário-executivo do Ministério das Relações Exteriores, considerado um nacionalista “duro”, opositor da Alça, ainda não teria o destino definido.

Lula sabe muito bem que a política é feita de ações concretas, mas também carece de uma boa dose de simbologia e do aproveitamento de oportunidades. E estas, entre novembro e dezembro, estarão abertas para a integração da América Latina como poucas vezes anteriormente. Ou o presidente usa o peso específico do Brasil para aproveitá-las, inclusive simbolicamente, como fez de forma equilibrada em crises na Venezuela e Equador e com a Bolívia, ou corre o risco de ver a janela de oportunidade, que está escancarada, fechar-se.

A América Latina reúne, como poucas vezes na história, coesão política – boa parte de seus presidentes divide as mesmas opiniões - e condições econômicas para se integrar. O petróleo acima dos 60 dólares o barril abastece as ações arrojadas de Chávez e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), com orçamento superior a 27 bilhões de dólares em 2006, garantem a Brasil e permitem aos dois países manejarem tal volume de recursos em prol de suas ações estratégicas na região.

Ainda que as propostas oficiais de integração sejam polêmicas, é especial a chance de os países da região têm de construírem instâncias de coordenação econômica e tentarem sobreviver mais ou menos autonomamente nas brechas entre os grandes blocos de poder - os EUA, a zona do euro e a Ásia articulada por China, Índia e Japão.

A janela histórica já poderia ter sido escancarada em Montevidéo, onde havia a expectativa de que Lula intermediasse a resolução das divergências entre Uruguai e Argentina, ajudasse a coesionar o Mercosul e aparasse as arestas para negociações futuras.

As próximas oportunidades serão a cúpula de presidentes da Comunidade Sulamericana de Nações (CSN), de 6 a 9 de dezembro, e as eleições presidenciais na Venezuela, ambas em dezembro. A terceira são as eleições para o Congresso dos EUA, nesta quarta (7). Todas têm a ver com a possível nova postura de Washington pode adotar para a região e como os países-alvos poderiam e deveriam reagir, para manter sua autonomia.
Os primeiros alvos seriam Bolívia, Venezuela e Equador. Os dois primeiros são os maiores opositores políticos de Washington na América Latina. Todos são ricos em petróleo, cujo abastecimento os EUA vêm tendo dificuldade de garantir na Arábia Saudita (que oficialmente possui a maior reserva do planeta) e no Iraque (a segunda maior).

Os democratas (oposição a Bush) devem retomar a maioria na Câmara dos Deputados e no Senado e terem força suficiente para reorientar a atenção que ora os EUA concentram no Oriente Médio, o que faria a América Latina subir no ranking de preocupações de Washington e obrigariam os países da região a se aproximarem.

A se confirmar a vitória democrata, a diplomacia estadunidense deve voltar a enfatizar, a exemplo do que fazia nos tempos de Bill Clinton, acordos de liberação comercial, numa estratégia que ainda combina a dimensão militar. Depois que a Alca não vingou, Washington insiste na assinatura de acordos com grupos de países (como já acontece com os da América Central) e, em paralelo, acordos bilaterais nos moldes do que os EUA vêm fazendo com a Colômbia (com sucesso) e com o Uruguai (até agora, com fracasso), além de insistir em acordos militares reservados com o Paraguai, um país de baixa institucionalidade, mas localizado no coração da América do Sul.

O principal alvo da política externa dos EUA para a região seria a Venezuela de Chávez. Oficialmente, o país tem a quinta maior reserva comprovada de petróleo no planeta e é o quarto maior fornecedor do combustível aos EUA. Mas, essas estimativas estão sendo revistas e, ainda por cima, Chávez é quem mais desafia abertamente Bush.

“Em junho, o Comando Sul dos EUA, o braço dos militares dos EUA na América Latina, concluíram que os esforços da Venezuela, Equador e Bolívia, de estender o controle estatal sobre suas reservas de óleo e gás, colocaram uma ameaça para o suprimento de óleo dos EUA. Enquanto a América Latina provê apenas 8,4% da produção mundial de petróleo, supre 30% do óleo consumido nos EUA”, escreveu Conn Hallinan, da organização não-governamental International Relations Centre.

“As reservas venezuelanas são consideravelmente maiores do que as da Arábia Saudita [principal fornecedor dos EUA] e podem chegar a 1,3 trilhões de barris. A maior parte do óleo venezuelano é pesado e caro de refinar, mas, á medida que o barril se mantenha acima dos 50 dólares – e poucos duvidam que cairá – isso é quase uma mina de ouro sem fim”.

Nesse ambiente, as eleições presidenciais venezuelanas em 3 de dezembro ganham ainda mais relevância. O presidente Hugo Chávez, o protagonista político das propostas de integração, está, segundo pesquisa de intenção de voto, de 10 a 30% à frente do segundo colocado.

Se Chávez confirmar o favoritismo, várias iniciativas de integração regional serão aprofundadas. Aí se incluem incluindo os acordos bilaterais com Cuba e outros países caribenhos (chamados de Alternativa Bolivariana para as Américas, Alba), pelos quais a Venezuela troca petróleo por serviços de saúde e esporte. Caracas também coopera em saúde e educação com a Bolívia e planeja construir um gasoduto de 20 mil km de extensão para escoar parte de suas enormes reservas de gás natural ao Brasil, Uruguai e Argentina.

Há, também a iniciativa mais importante, em termos econômicos e simbólicos: a criação de um banco de desenvolvimento integrado por capitais sulamericanos para apoiar, em moedas locais, sem envolver o dólar, projetos de infraestrutura. Essa é uma iniciativa na qual a Ministra da Economia da Argentina, Felisa Miceli, vem trabalhando desde janeiro em conjunto com seu colega venezuelano, Nelson Merentes. Os dois países teriam o sinal verde de Lula. Uma avant premiére do Banco do Sul já teriam sido os lançamentos de títulos da dívida de Argentina e Uruguai, adquiridos e vendidos posteriormente, com lucro, pelo governo da Venezuela.

Mas, se Chávez perder a eleição, dificilmente qualquer uma dessas ações iria adiante.

A terceira oportunidade da janela é a realização da IV Cúpula de Presidentes da CSN, entre 6 e 9 de dezembro, na cidade de Cochabamba (Bolívia). A Comunidade, uma proposta formulada pelo governo Lula, ainda não possui qualquer institucionalidade e se limita a propor a Iniciativa de Integração
da Infraestrutura da Região Sulamericana (IIRSA), um desconhecido (do grande público) conjunto de polêmicas (para quem o conhece) obras de infraestrutura de conexão física entre os 12 países da América do Sul. A IRSA seria financiada e coordenada tecnicamente pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os maiores aportes seriam feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), do Brasil.

Nunca na história da América Latina houve um cenário tão favorável á aproximação entre os países, nem a necessidade de realizá-la, por conta da disposição dos EUA de garantirem, a qualquer custo, sua hegemonia no planeta. Mas, terão os mandatários da região, e Lula em particular, a grandeza de perceber essa oportunidade histórica?


Publicado originalmente em http://outraglobalizacao.blogspot.com