segunda-feira, novembro 13, 2006

A OPERAÇÃO MADEIRA

Em agosto e setembro, enquanto o Brasil se entretinha com a campanha presidencial e dossiês até hoje não esclarecidos, acontecia uma vasta ação coordenada entre os dois candidatos a presidente, órgãos ambientais, agências de fomento, empresas estatais e uma das maiores companhias privadas do País. O objetivo: viabilizar política e financeiramente a construção das polêmicas megahidrelétricas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira (RO), na fronteira com a Bolívia. As usinas recebe sérias ressalvas de especialistas da área de energia e, obviamente, de ambientalistas.

O projeto tem orçamento de Brasil Grande: R$ 20 bilhões – ou mais de cinco vezes o valor de outra obra que atrai ampla oposição, a transposição do rio São Francisco –, fora a construção dos milhares de quilômetros de linhas de transmissão, que nenhum apoiador do projeto se arrisca a dizer em quanto ficará, nem quem será o responsável pela sua construção.

A Operação Madeira de certa forma aproximou Lula e Alckmin. Enquanto ambos se digladiavam nos debates da tevê, nos bastidores suas equipes concordavam em incluir nos programas de governo de ambos a construção de usinas controversas na Amazônia. O petista e o tucano ainda concordam com a construção de outra megahidrelétrica polêmica e também a incluíram em seus planos de governo: é Belo Monte, no Pará, onde a Camargo Corrêa há décadas é a preferida da estatal Eletronorte, “dona” do projeto.

A ação coordenada envolveu ainda o Ibama, que acelerou mas não garantiu visibilidade pública ao processo de licenciamento ambiental das obras; o Bndes, que diminuiu o custo do financiamento a projetos de geração e transmissão de energia e que há muito brada a sua vontade de ganhar dinheiro com a obra; e a dupla Furnas&Odebrecht, que mesmo sem terem vencido qualquer licitação para construir as hidrelétricas apresentam-se como as responsáveis pelo projeto. Por ora, ambas tentam cooptar apoios às controversas superusinas.

Não se conhece o emprego de quaisquer expedientes delubinos nem marcosvalerianos na Operação Madeira. Mas, chama a atenção nela o sincronismo entre as ações tanto de entidades públicas quanto de empresas privadas, passando por candidatos a Presidência da República com orientação política diferentes. Também é de estranhar a disposição de o governo tocar o processo de obra tão polêmica quanto cara, desprezando a precaução que precisa orientar políticas públicas dessa escala, no preço e nos impactos potenciais.

Os defensores de Jirau e Santo Antônjo esperam que a disponibilidade de energia naquela região induza ao aparecimento de um pólo agroindustrial que consumiria a maior parte da eletricidade. Para ser consumida, tanta energia demandaria a utilização em 30 milhões de hectares (para plantar soja, criar gado etc). A área é maior do que o próprio Estado de Rondônia e equivale a uma vez e meia o território do Uruguai.

A utilização de tanto espaço exigiria a derrubada de florestas em Rondônia e no Mato grosso, em regiões que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) considera prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade brasileira.

Ou seja: a construção de tamanha infra-estrutura induz o mesmo tipo de desenvolvimento que até hoje pouco beneficiou a população pobre de Rondônia e que gerou ampla destruição ambiental no estado. Suspeita-se que, por trás da construção das usinas de agora esteja a intenção de criar um grande lago artificial por onde as commodities agrícolas seriam exportadas e inserindo essa hidrovia e as hidrelétricas na estratégia do governo brasileiro de liderar a integração da América do Sul.

Aliás, a Casa Civil brasileira já apontou a criação da hidrovia como um ganho a mais do projeto e, posteriormente, retirou a proposta de construção de eclusas (que aumentariam o custo do projeto em cerca de R$ 1 bilhão), numa manobra para amenizar as críticas à obra.

Nem mesmo esse recuo foi suficiente para que os opositores do projeto deixem de alegar o que consideram a ser a verdadeira, e não assumida, intenção do complexo do Madeira: a construção de pelo menos mais duas usinas em território boliviano. O anúncio dessas hidrelétricas seria deixado para o futuro, como tática para vencer resistências inerciais no presente.

De toda forma, já está clara a opção pela volta dos megaprojetos de infra-estrutura na Amazônia como modelo de ocupação do território. Ela ratifica um crescimento econômico que até hoje só concentrou brutalmente a renda e favoreceu a emergência, naquela região, de uma Estado pouco republicano e que volta e meia ganha as manchetes nacionais por sua vinculação com o crime organizado.

Santo Antônio e Jirau não ajudariam a mudar esse quadro e até o radicalizariam, apesar de a Operação Madeira insistir na idéia de que construir as hidrelétricas é uma questão de “soberania nacional” . Na verdade, o caminho escolhido vai no sentido oposto. A construção das hidrelétricas pode acabar gerando mais uma disputa energética com a Bolívia, após os problemas derivados da decisão de La Paz nacionalizar os hidrocarbonetos, em 1 de maio de 2006.

A bacia hidrográfica do rio Madeira envolve Brasil, Bolívia e Peru e a construção de qualquer obra que impacte o território dos países vizinhos exigiria um acordo internacional, que não está sequer em cogitação por parte do Brasil. Pior: a organização não governamental boliviana Fobomade tem exigido esclarecimento sobre os possíveis impactos no território daquele país, baseada nos estudos do hidrogeólogo Jorge Molina. O pesquisador alerta para a possibilidade de inundação futura de amplas extensões de terra, com a formação do lago de Jirau.

Um roteiro em quatro ações
Na prática, a Operação acontece desta forma:
1. O Ibama, após meses de questionamentos, aprovou licenças preliminares para as obras e marcou as audiências públicas para discutir um pré-Estudo de Impacto Ambiental (EIA). O Ministério Público (MP) de Rondônia conseguiu uma limitar para interromper as audiências (marcadas para 7 e 11 de novembro), mas a Justiça federal já retirou a suspensão.
Como observa o sociólogo Luis Novoa, da Unir, o “EIA das usinas é uma colagem descoordenada de justificativas de metas pré-estabelecidas e isso fica evidente na aceitação [pelo Ibama] de estudos complementares que nada complementam”. Especialista em política e legislação dos recursos hídricos, Novoa recorda que “o complexo do Madeira, ao transformar tão radicalmente a morfologia da Bacia do rio, não poderia prescindir dos estudos de bacia. O empreendimento modificaria completamente o perfil da Bacia antes mesmo desta ser assim enquadrada, estudada e regulamentada”.

2. Enquanto isso, o Presidente reeleito põe em prática seu programa de governo. Nele, lê-se no capítulo “Brasil potência energética” a promessa de “priorizar o aproveitamento do potencial hidráulico da Amazônia, sobretudo das hidrelétricas do Madeira e de Belo Monte”, e Lula pede à Ministra do Meio Ambiente que não seja tão severa na concessão das licenças ambientais.

3. O Bndes, único financiador de longo prazo no Brasil para obras de infraestrutura, reduziu suas taxas para projetos de geração e transmissão de energia, com um detalhe, que só os conhecedores do setor elétrico observaram: o incentivo deixou de fora a área da distribuição, sintomaticamente aquela que não está diretamente relacionada a Jirau e Santo Antônio.

4. Furnas&Odebrecht, que há anos mantêm um casamento nas melhores obras da estatal, seguem contratando papers de especialistas brasileiros, tentando angariar boa vontade para com a obra. Este clima seria útil caso o MP questione o projeto. Em encontros privados com professores universitários e organizações não governamentais, as empresas sustentam que as usinas causarão menos impacto do que outros grandes projetos de infra-estrutura já instalados na região. Contudo, não explicam como evitariam que se repetisse a tragédia social e ambiental provocada pela usina de Tucuruí (no Pará), outra obra faraônica que até hoje engorda o caixa dos complexos minero-siderúrgico, que consomem energia intensivamente, mas que não conseguiu fazer o povo paranense se beneficiar da riqueza produzida pelo seu estado.

Os argumentos de quem é contra
Professores universitários levantam dúvidas sobre se haverá mercado no Brasil para consumir os quase 6,5 mil MW que Jirau e Santo Antônio produziriam. Afinal, todos os anos as projeções (pífias) de crescimento do PIB volta e meia são reajustadas para (muito) baixo (as previsões mais otimistas são de 3,5% em 2006), o que diminui a necessidade de energia para movimentar a economia. Além disso, o quase apagão de 2001 teria obrigado grandes consumidores de eletricidade a otimizarem e diminuírem a sua necessidade de energia.

Esses especialistas, entre eles os professores Arthur Moret, da Universidade de Rondônia (Unir),Oswaldo Sevá, da Unicamp, e Célio Berman, da USP, lembram que já passou da hora de o País ser mais crítico quanto aos incentivos que garante à energia consumida por corporações dos setores siderúrgico e outros consumidores intensivos de energia. Grandes exportadores dos seus produtos finais, eles se transformam em exportadores líquidos de energia, o que é muito bom para suas contas correntes, mas é péssimo para a sociedade brasileira.

Rever a política de subsídios aos grandes grupos e liberar esse volume de eletricidade consumida garantiria a energia de que o Brasil necessitaria, caso voltasse a crescer como a Argentina e a Venezuela (quase 9% neste ano), ou, pelo menos, na média da América Latina (cerca de 4,5%).

Se para presidente Lula desenvolvimento significa a construção de grandes obras, exatamente como na década de 1970, um fantasma típico daquele tempo pode voltar a nos assustar: projetos que beneficiam pouco a sociedade e são um fim em si mesmo.

Lula já avisou: quer ser comparado não aos governos anteriores, mas gostaria que os números do seu segundo mandato fossem cotejados com os do primeiro. E aí, vem a questão: para alcançar indicadores positivos, que tipo de desenvolvimento o presidente estaria disposto a induzir?

terça-feira, novembro 07, 2006

AMÉRICA LATINA: UMA OCASIÃO IMPERDÍVEL

Por Mário Soares (*)

Lisboa, outubro/2006 – A América Latina tem pela frente uma grande oportunidade para garantir um bom desenvolvimento sustentável. Precisa aproveitá-la. George W. Bush e Tony Blair estão inevitavelmente chegando ao final de seus mandatos, sem glória nem êxito. Por outro lado, o neo-liberalismo que quiseram implantar em nível universal está dando evidentes sinais de esgotamento.

O reformismo econômico-social-ambiental é o único caminho possível que conduz à paz e ao progresso. Mas é absolutamente necessário que o reformismo moderado (adotado por Chile, Argentina, Brasil e Uruguai, entre outros) não entre em conflito com o reformismo radical de
países como Venezuela e Bolívia. É importante para ambos reformismos que assim seja.

O desprestígio da política dos Estados Unidos (e da União Européia por omissão e complacência diante dos Estados Unidos), é muito grave para o Ocidente. Explica a arrogância com a qual alguns países agora se permitem desafiar as potências hegemônicas, cujas fragilidades foram colocadas à
prova pela Coréia do Norte e pelo Irã, entre outros países, e estão favorecendo um realinhamento das potências mundiais.

Não somente as potências chamadas emergentes, os BRICs: Brasil, Rússia, Índia, China, mas também por Japão, Indonésia, África do Sul e, obviamente, América Latina, cujos hispânicos começam a ser uma preocupação para os Estados Unidos protestante, branco e de íngua inglesa. Veja-se o último livro de Samuel Huntington.

A administração Bush, devido às dificuldades nas quais se envolveu nos últimos anos, descuidou um pouco da tradicional vigilância dos Estados Unidos em relação aos seus vizinhos do sul. Isto facilitou uma certa evolução positiva no plano econômico, social e político da região, sobretudo no Mercosul e nos países da Região Andina. Tudo está em desenvolvimento acelerado e pressente-se um esforço de integração solidária com o claro respeito das identidades nacionais que parece ser um bom presságio.

O modelo de livre-comércio, como a democracia, está caindo em desuso, dando lugar a teses reformistas, moderadas e radicais. Parece que as reformistas têm mais visibilidade internacional, embora, talvez, não se revelem, nos próximos anos, com as mais eficazes. Mas não há dúvida de que a importância dada um modelo econômico sustentável, com uma autêntica dimensão social
para assim fomentar sociedades mais igualitárias e justas, e uma dimensão ambiental, tão decisivamente importante hoje para a sobrevivência do planeta, tende a aproximar os países latino-americanos da UE, o que considero, como português, ibérico e europeu, extremamente proveitoso
para as duas partes.

Estou convencido de que Espanha e Portugal terão aí um papel importante e que a presidência portuguesa da UE, que terá lugar no segundo semestre de 2007, fará tudo o que estiver ao seu alcance para estimular as relações de solidariedade entre a América Latina (e não só o Mercosul) e a União Européia.

Não esqueçamos que a grande maioria dos países latino-americanos fala espanhol ou português, idiomas próximos e compreensíveis entre si, o que hoje constitui um conjunto lingüístico em expansão falado por cerca de 800 milhões de seres humanos (220 milhões português, 550 milhões espanhol), nos cinco continentes, o que representa a décima parte da população mundial.

Entretanto, é possível que a situação internacional registre uma distensão. Acredito que é possível evitar o conflito entre Irã e Estados Unidos através de negociações, em uma primeira fase mediadas pela União; se a intervenção, sob patrocínio das Nações Unidas no Líbano, incentiva uma solução de paz, que convém totalmente a Israel, até para facilitar o regresso indispensável ao diálogo entre Israel e Palestina, sem o qual não haverá paz, estabilidade nem progresso no Oriente Médio; Se a presidência alemã da União, no primeiro semestre de 2007, der, como espero, um novo impulso à construção européia, é muito possível que se assista a uma distensão internacional, muito necessária para estimular a economia mundial, tão afetada com o crescimento em flecha do preço do petróleo.

Da capacidade dos dirigentes latino-americanos para estabelecer uma ponte de convergência entre os dois reformismos pode depender a abertura de uma oportunidade única para toda a região. Com a solidariedade ibérica e, conseqüentemente, da União Européia, poderá ganhar impulso na região um novo ciclo de afirmação e progresso que tanto necessita do mundo tão conturbado e inseguro de nosso século XXI. (IPS/Envolverde)

(*) Mario Soares, presidente de Portugal no período 1986-1996.

A JANELA HISTÓRICA DA AMÉRICA LATINA

Enquanto Lula descansava durante o final de semana na Bahia, ocorreu em Montevidéo, no Uruguai, uma reunião de mandatários ibero-americanos que terminou marcada por três dúvidas:

1. a construção de polêmicas fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, na fronteira com a Argentina, deteriorará a relação entre Montevidéo e Buenos Aires a ponto de contaminar o Mercosul?;

2. a ausência de Lula já reflete uma decisão de o Brasil passar a priorizar suas relações com EUA e a União Européia, dando menos atenção aos vizinhos sulamericanos e abrindo espaço para Washington influir ainda mais na América Latina?; e

3. se esta nova orientação estratégica se confirmar, para que lado penderá o governo brasileiro em caso de a região e os EUA trem interesses antagônicos?

Um dia após ser reeleito em 29 de outubro, Lula afirmou à imprensa brasileira que o Mercosul, do qual é presidente pró-tempore, continua sendo, para ele, uma paixão especial. Seu Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorin, também ratificou que sua pasta continuará a olhar com mais carinho a América do Sul, onde empresas brasileiras têm uma enorme variedade de interesses.

Mas, já em 2 de novembro, o presidente voltou a exercitar a ambigüidade que marcou seu primeiro mandato e admitiu a três importantes jornais europeus - El País (Espanha), La República (Itália) e Le Figaro (França) - que de agora em diante pretende ter “relações privilegiadas” com a Europa e os EUA.

A eventual mudança de estratégia no front externo do Brasil – que sozinho representa metade do território, da população e do PIB da América Latina - poderá alterar o ponto de equilíbrio que tem assegurado que a “onda vermelha” se espalhe por toda região. Também atrapalhará a integração regional, visivelmente apoiada no primeiro mandato, e vai criar problemas graves para qualquer país que pense em resguardar seus recursos naturais – especialmente aqueles vinculados à energia –, como Bolívia e Venezuela.

Iniciada em 1998 com a eleição de Chávez na Venezuela, a onda de mandatários esquerdistas se confirmou no Brasil, na Argentina, Uruguai e Bolívia. Levou Ollanta Humala ao segundo turno no Peru e ajudou Lopes Obrador a criar uma situação de poder dual no México, mas ainda não chegou a definir a situação no Equador e Nicarágua, que terão o segundo turno das eleições presidenciais.

Com a “onda” ressurgiu também o sonho de Bolívar e Martí: a integração regional para estimular o desenvolvimento econômico e criar as condições mínimas para enfrentar o imperialismo dos EUA, que desde o século 18 enxerga a região como seu quintal.

Em defesa de Lula pode-se argumentar que, nestes tempos de formação de um novo governo, alteração de rumo tão grave na política externa brasileira é mera especulação daqueles que preferem Nova Iorque e Paris a La Paz e Caracas.
Mas, a pulga insiste em continuar atrás da orelha. Primeiro, porque o governo lulista tem sido marcado por contradições como essas que ele expressou já em seus primeiros dias de mandato. E, em segundo lugar, porque há meses circula em Brasília que Lula estaria disposto até a enviar para um conveniente exílio dois auxiliares próximos, que são os formuladores, fiadores e operadores da prioridade à América do Sul. E, acusados pelos pró-americanistas de anti-americanistas.

Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula, presidente nacional do PT e coordenador da campanha de reeleição do presidente, iria para uma bem remunerada representação do Brasil no Banco Mundial, em Washington. Samuel Pinheiro-Guimarães, secretário-executivo do Ministério das Relações Exteriores, considerado um nacionalista “duro”, opositor da Alça, ainda não teria o destino definido.

Lula sabe muito bem que a política é feita de ações concretas, mas também carece de uma boa dose de simbologia e do aproveitamento de oportunidades. E estas, entre novembro e dezembro, estarão abertas para a integração da América Latina como poucas vezes anteriormente. Ou o presidente usa o peso específico do Brasil para aproveitá-las, inclusive simbolicamente, como fez de forma equilibrada em crises na Venezuela e Equador e com a Bolívia, ou corre o risco de ver a janela de oportunidade, que está escancarada, fechar-se.

A América Latina reúne, como poucas vezes na história, coesão política – boa parte de seus presidentes divide as mesmas opiniões - e condições econômicas para se integrar. O petróleo acima dos 60 dólares o barril abastece as ações arrojadas de Chávez e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), com orçamento superior a 27 bilhões de dólares em 2006, garantem a Brasil e permitem aos dois países manejarem tal volume de recursos em prol de suas ações estratégicas na região.

Ainda que as propostas oficiais de integração sejam polêmicas, é especial a chance de os países da região têm de construírem instâncias de coordenação econômica e tentarem sobreviver mais ou menos autonomamente nas brechas entre os grandes blocos de poder - os EUA, a zona do euro e a Ásia articulada por China, Índia e Japão.

A janela histórica já poderia ter sido escancarada em Montevidéo, onde havia a expectativa de que Lula intermediasse a resolução das divergências entre Uruguai e Argentina, ajudasse a coesionar o Mercosul e aparasse as arestas para negociações futuras.

As próximas oportunidades serão a cúpula de presidentes da Comunidade Sulamericana de Nações (CSN), de 6 a 9 de dezembro, e as eleições presidenciais na Venezuela, ambas em dezembro. A terceira são as eleições para o Congresso dos EUA, nesta quarta (7). Todas têm a ver com a possível nova postura de Washington pode adotar para a região e como os países-alvos poderiam e deveriam reagir, para manter sua autonomia.
Os primeiros alvos seriam Bolívia, Venezuela e Equador. Os dois primeiros são os maiores opositores políticos de Washington na América Latina. Todos são ricos em petróleo, cujo abastecimento os EUA vêm tendo dificuldade de garantir na Arábia Saudita (que oficialmente possui a maior reserva do planeta) e no Iraque (a segunda maior).

Os democratas (oposição a Bush) devem retomar a maioria na Câmara dos Deputados e no Senado e terem força suficiente para reorientar a atenção que ora os EUA concentram no Oriente Médio, o que faria a América Latina subir no ranking de preocupações de Washington e obrigariam os países da região a se aproximarem.

A se confirmar a vitória democrata, a diplomacia estadunidense deve voltar a enfatizar, a exemplo do que fazia nos tempos de Bill Clinton, acordos de liberação comercial, numa estratégia que ainda combina a dimensão militar. Depois que a Alca não vingou, Washington insiste na assinatura de acordos com grupos de países (como já acontece com os da América Central) e, em paralelo, acordos bilaterais nos moldes do que os EUA vêm fazendo com a Colômbia (com sucesso) e com o Uruguai (até agora, com fracasso), além de insistir em acordos militares reservados com o Paraguai, um país de baixa institucionalidade, mas localizado no coração da América do Sul.

O principal alvo da política externa dos EUA para a região seria a Venezuela de Chávez. Oficialmente, o país tem a quinta maior reserva comprovada de petróleo no planeta e é o quarto maior fornecedor do combustível aos EUA. Mas, essas estimativas estão sendo revistas e, ainda por cima, Chávez é quem mais desafia abertamente Bush.

“Em junho, o Comando Sul dos EUA, o braço dos militares dos EUA na América Latina, concluíram que os esforços da Venezuela, Equador e Bolívia, de estender o controle estatal sobre suas reservas de óleo e gás, colocaram uma ameaça para o suprimento de óleo dos EUA. Enquanto a América Latina provê apenas 8,4% da produção mundial de petróleo, supre 30% do óleo consumido nos EUA”, escreveu Conn Hallinan, da organização não-governamental International Relations Centre.

“As reservas venezuelanas são consideravelmente maiores do que as da Arábia Saudita [principal fornecedor dos EUA] e podem chegar a 1,3 trilhões de barris. A maior parte do óleo venezuelano é pesado e caro de refinar, mas, á medida que o barril se mantenha acima dos 50 dólares – e poucos duvidam que cairá – isso é quase uma mina de ouro sem fim”.

Nesse ambiente, as eleições presidenciais venezuelanas em 3 de dezembro ganham ainda mais relevância. O presidente Hugo Chávez, o protagonista político das propostas de integração, está, segundo pesquisa de intenção de voto, de 10 a 30% à frente do segundo colocado.

Se Chávez confirmar o favoritismo, várias iniciativas de integração regional serão aprofundadas. Aí se incluem incluindo os acordos bilaterais com Cuba e outros países caribenhos (chamados de Alternativa Bolivariana para as Américas, Alba), pelos quais a Venezuela troca petróleo por serviços de saúde e esporte. Caracas também coopera em saúde e educação com a Bolívia e planeja construir um gasoduto de 20 mil km de extensão para escoar parte de suas enormes reservas de gás natural ao Brasil, Uruguai e Argentina.

Há, também a iniciativa mais importante, em termos econômicos e simbólicos: a criação de um banco de desenvolvimento integrado por capitais sulamericanos para apoiar, em moedas locais, sem envolver o dólar, projetos de infraestrutura. Essa é uma iniciativa na qual a Ministra da Economia da Argentina, Felisa Miceli, vem trabalhando desde janeiro em conjunto com seu colega venezuelano, Nelson Merentes. Os dois países teriam o sinal verde de Lula. Uma avant premiére do Banco do Sul já teriam sido os lançamentos de títulos da dívida de Argentina e Uruguai, adquiridos e vendidos posteriormente, com lucro, pelo governo da Venezuela.

Mas, se Chávez perder a eleição, dificilmente qualquer uma dessas ações iria adiante.

A terceira oportunidade da janela é a realização da IV Cúpula de Presidentes da CSN, entre 6 e 9 de dezembro, na cidade de Cochabamba (Bolívia). A Comunidade, uma proposta formulada pelo governo Lula, ainda não possui qualquer institucionalidade e se limita a propor a Iniciativa de Integração
da Infraestrutura da Região Sulamericana (IIRSA), um desconhecido (do grande público) conjunto de polêmicas (para quem o conhece) obras de infraestrutura de conexão física entre os 12 países da América do Sul. A IRSA seria financiada e coordenada tecnicamente pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os maiores aportes seriam feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), do Brasil.

Nunca na história da América Latina houve um cenário tão favorável á aproximação entre os países, nem a necessidade de realizá-la, por conta da disposição dos EUA de garantirem, a qualquer custo, sua hegemonia no planeta. Mas, terão os mandatários da região, e Lula em particular, a grandeza de perceber essa oportunidade histórica?


Publicado originalmente em http://outraglobalizacao.blogspot.com