Angra 3 e as miopias oficiais
Pela enésima vez, a construção de Angra 3 voltou à pauta. Mas, agora, esse debate exige mais atenção Não apenas porque a usina pode ser o ponto de partida para um novo programa nuclear brasileiro, com a instalação de outras plantas em São Paulo e no Nordeste. Mas, também, porque os R$ 7,2 bilhões que o governo planeja destinar à Angra 3 estão fazendo falta em áreas que podem levar o Brasil a sair na frente da corrida pela energia que substituirá parte do uso dos combustíveis fósseis.
Trata-se das pesquisas da viabilidade econômica da produção de etanol a partir da celulose. No nosso caso, da celulose contida no bagaço da cana que produzimos em enorme escala. Nessa área, temos quase tudo: conhecimento científico desenvolvido e condições naturais – solo, insolação – que garantem enormes vantagens comparativas do Brasil. Só carecemos da decisão política para dar prioridade de estado a essa opção estratégica.
A pesquisa do álcool de celulose é tão cara e demorada quanto potencialmente lucrativa. Exige um esforço persistente. É por isso que há anos os Estados Unidos investem centenas de milhões de dólares nesta área. É tanto dinheiro que, como estima o neozelandês Alan MacDiarmid, Prêmio Nobel de Química em 2000, já em 2008 os EUA deverão ultrapassar a vantagem tecnológica que o Brasil possui nesse campo. Há dois anos, em palestra na Unicamp, MacDiarmid alertou o governo brasileiro dessa ameaça.
Mas, crescimentista que é, o governo Lula prioriza o retorno de investimentos no prazo curto. Estaria inclinado mesmo em investir alguns bilhões de dólares nas obras de Angra 3 e sequer considerou o álcool de celulose. Ou, pelo menos, não pautou nesse sentido o seu Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que em reunião na segunda-feira (25) optou por recomendar a construção de Angra 3 e, ao que se sabe, sequer debateu o problema do álcool de celulose.
Talvez haja como explicar a omissão. O problema é que o governo fez a opção pelo crescimento econômico como um fim em si mesmo. Isto exige projetos cada vez maiores, na suposição de que a expansão do PIB demandará grandes blocos de energia. O truque escondido nessa equação é imaginar que o resultado final (grandes projetos) não pode ser outro porque os pressupostos (o crescimento a qualquer custo) foram orientados para atingir esse fim.
Não ocorre aos planejadores olhar a questão energética de outros pontos de vista que não a do permanente aumento da capacidade de geração. Talvez fosse o caso de diminuir demanda por energia, talvez fosse o caso de aproveitar melhor a fonte que já temos, como o álcool de cana, que desperdiça bilhões de toneladas de bagaço. Bagaço é celulose e poderia gerar ainda mais álcool. Mas, para ser viável economicamente, essa tecnologia carece de pesquisa. E de dinheiro. E o dinheiro está indo para Angra 3 e seus filhotes.
Reduzir o consumo de energia também é necessário. O Brasil não se sustenta tendo que fornecer quantidades cada vez maiores a um sistema desperdiçador de energia. Há muito os pesquisadores indicam que a energia mais barata é aquela que não é gasta. Mas essa energia, que exige pouca ou nenhuma obra, não entra no rol de considerações do nosso governo.
O planejamento energético também poderia incorporar o estímulo a cadeias produtivas que agregassem valor tecnológico e econômico, que fossem poupadoras de energia e alimentadas por fontes renováveis – eólica, solar, biomassa. Não apenas para gastar menos energia, mas, também, para que o Brasil adotasse uma posição pró-ativa no campo das mudanças climáticas. (É bom lembrar de outra miopia do governo brasileiro, que se recusa a adotar políticas públicas sérias para fazer despencar o crescente índice de emissão de gases gerados pela queima de floresta, que nos colocam entre os maiores poluidores do planeta.)
Enquanto vacila no desenvolvimento do álcool de celulose, o Brasil vai embarcando numa canoa que pode furar a qualquer momento. Em março, Lula firmou compromissos com Bush para utilizar a competência científica desenvolvida desde o aparecimento do pró-álcool, em meados da década de 1970, para transformar nosso País numa espécie de gerente de uma rede mundial de fornecimento de etanol ao enorme mercado dos EUA.
O problema é que os EUA não pretendem ficar no papel de consumidores finais de um produto sobre o qual eles teriam pouca gerência – é isso que hoje acontece com o petróleo que hoje importam de países instáveis, que sempre podem se insurgir contra Washington, como a Venezuela e o Iraque.
Por isso os EUA querem a supremacia também na produção do álcool de celulose – a partir de qualquer biomassa, de milho a cascas de arroz e ramos de árvores – e por isso investem pesado na viabilização econômica do álcool de celulose.
O Brasil corre o risco de investir do próprio bolso vários bilhões de dólares para produzir etanol e, logo no médio prazo, ficar com um enorme mico nas mãos, caso os EUA logo ali na frente abandonem a compra do etanol produzido internacionalmente, para consumir o álcool de celulose gerado em seu mercado interno. Mas, em vez de se dedicar a vencer essa corrida, o Brasil prefere despender seus caraminguás na velha tecnologia nuclear. A miopia pode ficar muito cara.
Também publicado em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_Post=63628&a=112